Uma tarde quente e abafada
parecia ser como outra qualquer. Pássaros cantando e galhos das imensas árvores
imóveis embelezando o cenário natural. Entretanto, quando tudo está muito
normal, quase sempre é sinal de que algo relevante está na iminência de
acontecer. E desta vez não foi diferente, só não sabia que seria um
acontecimento de certa forma traumático e reflexivo. Pois bem, meus queridos
leitores, estava fazendo o patrulhamento entre os portões 1 e 2 do antológico e
sofrido Campo de São Bento. Para quem não conhece, são os portões da rua Lopes
Trovão, e como todos os portões deste recinto, podem entrar inescrupulosos
oriundos das mazelas sociais com a intenção de furtar ou consumir drogas, mas
quase sempre o que se vê são pessoas querendo apreciar o silêncio da natureza,
idosos adeptos dos carteados, extraterrestres em busca de abduções e mulheres a desfilar com seus
cachorrinhos.
No caso da nossa renegada, ainda
estou na dúvida se é uma mulher ou uma extraterrestre, mas ao final do texto,
tiraremos nossas próprias conclusões. Como estava relatando, lá estava eu de
brioso Guarda Municipal cobrindo os portões 1 e 2, atento aos movimentos da
circulação de pessoas, do cantarolar dos pássaros e daqueles que sentam nos
bancos parecendo não haver nenhum tipo de alusão ao dia do amanhã. E justamente
de um desses bancos, uma voz me desperta gritando: Uma e meia! Uma e meia! Foi
nesse horário que você marcou comigo! Você esqueceu? Já são duas horas e você
nem se lembrava que tinha marcado de me encontrar! Aqui, no Campo de São Bento!
Estou aqui! Você vem? Uma e meia! Onde você está? Direcionei meu olhar para a
direção dos gritos e me deparei com uma mulher muitíssimo acima do peso, com
cerca de 40 anos de idade ao celular. Geralmente as pessoas, em uma ligação,
direcionam o aparelho de modo que parte inferior fique na altura da boca e a
superior na do ouvido, mas não era assim que ela usava. O celular estava
completamente à frente de sua boca e ela só lembrava de posicionar em sua
orelha a parte para ouvir quando terminava o primeiro ciclo de gritos. Ela tinha tantos poucos dentes que era possível
contá-los sem dificuldade – contei uns cinco -. Seu vestido alcançava até dois
palmos abaixo da virilha, o que fazia mostrar suas pernas com fortes marcas de
varizes, parecendo um mapa rodoviário, seu cabelo estava solto e misturado com
os pingos do suor do rosto, porém o celular dela era mais novo que o meu. Na
mesma intensidade que gritava, ela gesticulava, fazendo com que suasse mais e
mais. Os gritos foram tão desesperadores, que até aqueles que tiravam cochilo
nos bancos próximos se levantaram para ver o que estava acontecendo. Uma
senhora que há horas preenchia folhas e mais folhas de um grosso livro de
palavras cruzadas, tirou seus óculos, colocou o livro em seu lado direito do
banco e olhou assustada.
Os gritos continuaram e só eram interrompidos quando a ligação parecia ser desligada e a nossa Renegada ligava novamente sem ao menos dizer o inicial alô para tornar a gritar. Conforme o ciclo do grita, desliga, liga e grita se repetia, as pessoas no entorno voltavam à sua vida normal. Quem cochilava, voltou a cochilar e a tarada das palavras cruzadas já estava na terceira folha após os gritos. Seguindo a normalidade, continuei a andar, mas prestando a atenção no que poderia vir a acontecer. A duração do ciclo desesperador levou vários minutos, já estava na terceira ida e volta do portão 1 ao 2 quando a Renegada parou de gritar e tirou o telefone da direção da sua boca. O que passa acontecer nesse instante é uma mórbida transformação da revolta e da raiva para a derradeira e pura tristeza, dessas que somente os verdadeiros abandonados conseguem sentir. Com o celular em uma das mãos, o olhar da nossa querida Renegada passou a fitar um horizonte infinito, lacrimejando concomitantemente com um perceptível esforço para não permitir que as lágrimas desabassem. Curiosamente, mais uma vez, os olhares ao redor voltaram-se para nossa Renegada, só que dessa vez ao invés de carregarem uma reprovação, manifestavam compaixão e pena. Como se percebesse a tétrica cena que acabara de encenar precipuamente pela atenção de um homem que sequer se lembrava do tal encontro, ela passou a olhar ao seu redor – inicialmente envergonhada por todos olharem para ela - e posteriormente resignada pela sua condição de renegada, voltando seu olhar envergonhado para baixo como se aceitasse a compaixão de seu atento público.
Tornei a caminhar para o portão 2
de forma sutil para que não parecesse que havia prestado a atenção nela, porém me senti no
dever de também dar a minha compaixão. Ao passar em sua frente, ela conseguiu
coragem para levantar seu olhar envergonhado para a minha direção e
inevitavelmente nossos olhares se cruzaram. Como se tivesse a certeza de que
fora inevitável ser mais um da plateia e esperasse minha complacência, dei um
sorriso para ela e fui correspondido. Curiosamente, soou como um pacto, onde
meu sorriso complacente serviu como minha contribuição à corrente de compaixão.
Neste gesto, quis transmitir “tudo bem, essas coisas acontecem, sinto muito por
esquecerem-se de você.” Uma vez o Bob Marley disse que a curva mais linda de
uma mulher era o seu sorriso, diante do desprovimento de curvas corporais, até que o
sorriso dela não era feio. Mesmo com os seus cinco dentes, era perceptível certa
beleza interior. Na hora, esse sorriso que trazia uma extensa bagagem de
sofrimento e rejeição, me comoveu ao ponto de pensar em passar algum número de
algum amigo solteiro para que ela conversasse pelo whatsapp, mas como as
chances desse amigo passar a ser inimigo eram grandes, acabei desistindo da ideia.
A nossa Renegada continuava
sentada mesmo já havendo passado cerca de uma hora desde o horário marcado para
o encontro. Seu olhar envergonhado agora era atento e apreensivo. Atenta ao
entra e sai do portão 2, para este ela se mantinha voltada, literalmente, com
uma perna para a frente e toda a parte do seu corpo voltado para o portão, de
modo que nem a fez perceber que suas pernas se mantinham abertas o bastante
para possibilitar a visão de sua calcinha branca. Sim, era possível tal cena!
Olhar isso era pior que visitar o inferno com o Dante. Firme na esperança do
seu homem aparecer e dar ao seu dia o verdadeiro significado de felicidade, lá
ela se mantinha firme e forte. O senhor que estava deitado, se levantou e foi
embora, talvez pelo medo dele se sentir no árduo dever de ser o salvador daquela
triste mulher. E a tarada das palavras cruzadas, após preencher seus três
grossos livros, permanecia imóvel, como se esperasse o desfecho desse caso com
uma curiosidade maior do que se estivesse assistindo ao último capítulo de uma
novela.
Nesses momentos é que se
consegue perceber o quanto um homem pode ser fundamental na vida de uma
mulher. Não importa o seu poder aquisitivo, a qualidade das suas roupas e a
quantidade dos seus dentes. Para a nossa querida Renegada, era nítido que seu
estado físico e emocional não exigia muito do universo masculino, qualquer
homem servia. Poderia ser um morador de rua ou um desempregado com todas as
suas contas atrasadas. Para ela, bastava ser homem. Um homem para fazê-la
sentir-se mulher, que consegue laçar o sexo masculino em uma plena tarde de
terça-feira e dar a ela o sentido da conquista. Era implorando por isso que
tantos gritos desesperadores foram dados. Não obstante, quanto mais se deposita
o sentido da própria vida no outro, maiores são as chances de sofrimento. Ter o
seu próprio rumo, de forma independente, e se valorizar, evita
desesperos como esse.
Faz exatamente uma hora e meia do
horário marcado, queridos leitores. A Renegada está sentada com seus olhar
triste para o portão 2. Da grande plateia inicial, só restou a tarada das
palavras cruzadas e eu. Torcia mais para esse homem chegar do que para a
seleção brasileira na última Copa do mundo. Dizem que a esperança é a última
que morre e até então esse ditado estava sendo vivenciado, mas
tudo tem seu limite. O intenso suor de momentos anteriores que escorria pelo
seu rosto molhando seu cabelo e seu vestido, já havia secado, não antes sem
deixá-la parecendo um leão despenteado. Como se conseguisse esgotar seus
últimos momentos de extrema submissão, a nossa querida Renegada se levanta,
caminha em direção ao portão que por tanto esperou seu homem entrar, e com a
cabeça erguida, mas com o celular em uma das mãos, sai do Campo de São Bento a
adentrar à rua Lopes Trovão, buscando uma única coisa: sua próxima vítima.
Lindo texto, pura reflexão. Continue escrevendo sobre suas vivências. O seu trabalho além de ser muito importante para a sociedade, também se torna relevante para nós leitores .
ResponderExcluirParabéns
Esse texto traz muitas reflexões. Torci muito para que ela não saísse tão mal de um lugar que remete paz.
ResponderExcluirE talvez a "próxima vítima" seja um sortudo que ganhe todo amor que alguém possa dar. Tomara.
Você é um excelente escritor!
Nota 10. Digno de uma coluna em um conceituado jornal. Parabéns.
ResponderExcluirA sua crónica está perfeita!
ResponderExcluirContinue.
Um abraço
Beatriz
VIDA E PENSAMENTOS
http://pegadasdeanjo.blogspot.com